24/04/2011

Amores Perigosos

Amores Perigosos

Capítulo Um

O arrepio glacial que me percorreu a espinha não tinha absolutamente nada que ver com o maravilhoso sorvete triplo de passas ao rum, pistache e chocolate que jazia semidevorado diante de mim. Também não foi o sorvete que gelou todo meu corpo e me paralisou com a colher ainda no ar, pronta para atacar uma vez mais a estupenda sobremesa.

Pra dizer a verdade, de uma hora pra outra eu havia me esquecido por completo do sorvete. Até isso o medo é capaz de fazer comigo.

Vampiro.

Aquele deus grego que se movia com elegância e displicência por entre as mesas da praça de alimentação do shopping era um vampiro.

Não me pergunte como é que eu sabia. Resultado da convivência, acho. Fazia meses que não aparecia nenhum vampiro querendo dar uma chupadinha nas minhas veias e artérias, mas é como andar de bicicleta. Uma vez que você cria uma certa intimidade com eles, nunca mais esquece como são. Não sei bem o que era. A palidez, com certeza, mas não apenas isso. Talvez o charme irresistível que irradiava dele, talvez a forma fácil como se movia, ou sei lá. Talvez algo que inconscientemente eu fosse capaz de reconhecer depois de meus contatos tão estreitos com os vampiros.

Fosse o que fosse, que eu tinha certeza absoluta do que ele era. Uma certeza tão absoluta que me deixava morta de medo.

– ... e foi um absurdo, porque a revista aceitou. Tudo bem, concordo que a gente tem que dar uma força pras revistas científicas nacionais, mas elas pelo menos têm que arranjar uns revisores decentes. Imagina só, aceitar um trabalho onde o autor escreve mexer com ch! Nem revisar o texto no computador o cara sabe? E esse é só um detalhe, porque precisa ver os erros lógicos dele, as falhas metodológicas, e os revisores nem percebem, pode uma coisa dessas? O trabalho...

Eu adoro a Carol e aquele assunto me faria fofocar por horas. Não é todo dia que um desafeto seu publica, numa prestigiada publicação científica nacional, um trabalho cheio de erros cabeludos, de todos os tipos, tamanhos e modelos. E não é todo dia que esse tipo de coisa gera uma onda de e-mails indignados – com a revista, com o autor, com os revisores. A Carol estava por dentro de tudo, pois era amiga do editor e foi o ombro dela que ele escolheu pra chorar as pitangas.

A gente tinha combinado se encontrar de tardezinha, depois que ela saísse da universidade, para vir ao shopping, fazer umas comprinhas e comer qualquer coisa caloricamente incorreta, tipo um sorvete fenomenal, que pra mim combina muito bem com o frio do inverno, enquanto ela me punha a par da encrenca. Nossa agenda tinha sido cumprida ao pé da letra.

Até agora.

Vampiros não estavam no script.

Merda.

A Carol continuava falando mas a voz dela era agora ruído de fundo. Eu só prestava atenção naquele cara alto, cabelos curtos de um castanho-claro quase loiro, corpo malhado e muito bem proporcionado, jaqueta de couro e jeans justos e desbotados, que prometiam delinear uma bunda perfeita... Bem que ele podia estar de costas, se afastando de mim, e não se aproximando, mas nem sempre as coisas são como a gente quer.

Bom, pelo menos não era em mim que ele estava interessado. Em se tratando de vampiros, esse pequeno detalhe já é suficiente pra me deixar feliz.

Não era eu o alvo de sua atenção.

Ele vinha vindo com um andar descansado. Quem não soubesse acharia que era apenas mais um playboyzinho em busca de uma mesa vazia.

Mas eu sabia. Eu estava assistindo a uma caçada. Seu olhar era um olhar predador, e estava fixo naquela moça de traços orientais sentada sozinha numa mesa, a sua frente um prato de salada e uma revista aberta, que ela lia enquanto mastigava devagar suas alfaces. Esguia, de pernas longas e saia curta. Um bronzeado tão perfeito que só podia ter saído de uma clínica de estética, dessas bem caras. Cabelo comprido, negro e brilhante. Olhos em fenda, misteriosos. Lábios bastante desejáveis. Mãos delicadas e finas, com dedos finos e lânguidos, unhas perfeitas de um vermelho sangüíneo. Movimentos sedutores até ao virar as páginas de uma revista. Uma mulher sabe reconhecer quando está em presença de uma criatura como essa, tão sensual que ofusca qualquer outro ser humano do sexo feminino que esteja num raio de cem metros. Nós sabemos reconhecer a concorrência desleal.

O vampiro percorria um caminho sinuoso e ao mesmo tempo decidido, aproximando-se da moça e por tabela de mim. Ela estava a duas mesas de distância de onde Carol e eu estávamos.

Meu medo crescia a cada passo que ele dava. Eu sabia muito bem do que um vampiro era capaz. Eu tinha sentido, e mais de uma vez, na minha própria pele, o tremendo poder de sedução dessas criaturas desconcertantes e o todo o perigo dessa sedução.

Na minha própria pele... Ui, isso foi literal. Infelizmente. Hum, infelizmente? Sei lá. Tá, admito, meus sentimentos com relação aos vampiros não estão nada claros, mas deixa quieto, não gosto muito de pensar nesse assunto.

O fato é que até então eu achava que tinha ficado livre dos vampiros. Ah, droga, não achava nada, eu estava era tentando me enganar. Claro que não era verdade. A prova estava bem defronte de meus olhos, um vampiro sarado com pinta de top-model chegando mais e mais perto, cada vez mais, daquela verdadeira Miss Nissei Século XXI.

Cacete.

Eu tinha certeza do que estava para acontecer. Ele faria algum comentário inocente, ela levantaria os olhos, talvez até tivesse tempo de avaliar o atraente material humano a sua frente. Então ela o olharia nos olhos. E estaria perdida.

Talvez eu estivesse enganada. Eles poderiam ser amigos. Eles poderiam ser amantes. Pelo que sei, isso até acontece entre vampiros e humanos. Eles podiam simplesmente ter marcado um encontro ali no shopping, seguido de um ardente momento amoroso que incluiria uma apaixonada doação de sangue.

Algo, porém, me dizia que não era nada disso o que estava rolando. Havia perigo ali, e eu o sentia como um perfume no ar ou um ruído incômodo. O perigo fazia formigar meu couro cabeludo e punha de pé os pelinhos de minha nuca. A sensação de que eu precisava fazer alguma coisa, tomar uma atitude, era irresistível. Mesmo que estivesse apavorada pelo que podia acontecer à moça e pelo que podia acontecer comigo, e mesmo correndo o risco de passar ridículo, pois caso estivesse certa e não agisse, aquela mulher poderia estar morta antes do próximo nascer do sol.

E não, eu não achava que estivesse errada.

Continua...

Martha Argel


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Nina Vamp

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Essa sou eu!!!